Poemas “desentranhados” de alguns livros seus
por Carlos Rodrigues Brandão
e raros poemas escritos pelo próprio Rubem Alves[1]
As maçãs eram sacramentos
Comendo o mundo
aquelas maçãs estavam cheias de outono,
de folhas amarelas, de folhas vermelhas,
de geada, de cheiro de folhas no chão.
De nostalgia.
Dentro de cada maçã havia um mundo,
o mundo deles.
Comendo a maçã, eles comiam
também o mundo que havia nela.
As maçãs eram sacramentos.
as minhas maçãs eram sacramentos
de um outro mundo,
ainda que estivessem na mesma cesta.
A maçã, 14
[1] Este foi o último livro que Rubem viu, antes de nos deixar. Depois de criado, eu o levei a ele. Ele folheou as minhas folhas impressas do computador e comentou comigo de sua alegria de ver afinal algo de sua prosa poética versejada como poemas. Não chegou a ver o livro UM IPÊ AMARELO, UMA PAINEIRA BRANCA pronto e deitado. “Encantou-se” antes. Ele gostava sempre de repetir João Guimarães Rosa: “as pessoas não morrem. Ficam encantadas”. O livro foi publicado pela Editora Adônis, de Americana, na Coleção Amigos da Poesia. No livro editado existem vários outros “poemas encontrados na prosa poética de Rubem Alves”, com uma indicação bibliográfica mais atualizada e precisa.
E Deus entrou na dança
E esse caracol de sons foi enrolando tudo,
tomando a forma de um homem e uma mulher
que se abraçavam e se separavam,
por vezes entravam um dentro do outro
de tal forma que nem era possível saber qual era qual,
e Deus entrou na dança. Os corpos nus
e achavam bonita a nudez porque eram crianças
que brincavam uma com a outra,
o corpo da mulher era brinquedo para o homem,
o corpo do homem era brinquedo para a mulher,
e de vez em quando eles desapareciam
numa explosão de cores e perfumes,
e Deus se viu refletido pela primeira vez nos olhos deles,
duas crianças, homem e mulher…
E do seu amor surgiram
as primeiras palavras a serem faladas.
Perguntaram-me se acredito em Deus, 32
Deus é o nome que dou
Deus é o nome que dou
a um vazio imenso
que mora na minha alma.
Vazio onde voam os meus desejos
na esperança de encontrar, no futuro,
as coisas amadas
que o tempo me roubou.
O melhor de Rubem Alves (omdra) 69
Perguntaram-me se acredito em Deus
Perguntaram-se se acredito em Deus.
Respondi com versos do Chico:
“Saudade é o revés do parto.
É arrumar o quarto
para o filho que já morreu”.
Sou um construtor de altares.
Construo altares à beira
de um abismo escuro e silencioso.
Eu os construo com poesia e música.
Os fogos que neles acendo
iluminam o meu rosto e me aquecem.
Mas o abismo permanece
escuro e silencioso.
Fé, um morango
Fé é um morango
que se come pendurado num galho
à beira do abismo,
pelo gosto bom que tem,
sem nenhuma promessa
de que ele nos fará flutuar
quando o galho se quebrar…
omdra, 126
As aves do céu, os lírios dos campos
Tudo o que vive é pulsação do sagrado.
As aves dos céus, os lírios dos campos…
Até o mais insignificante grilo
no seu cricri rítmico,
é uma música do Grande Mistério.
É preciso esquecer os nomes de Deus
que as religiões inventaram
para encontrá-lo sem nome
no assombro da vida.
omdra, 75
E a alma pode então
Por vezes, nas minhas fantasias,
eu entro para um mosteiro.
Protegidos por seus muros de pedras,
seus jardins e fontes falam de calma,
do tempo vagaroso e nostálgico dos sinos,
que pontuam com música sempre igual
a presença da eternidade.
Separado da loucura dos homens
o corpo se acalma.
E a alma pode então se entregar à alegria
dos pensamentos mansos.
Pelas manhãs os monges leem seus breviários,
as mesmas palavras sagradas
que vão atravessando os séculos.
Conversas sobre política, 71
A branda fala da morte
A branda fala da morte
não nos atemoriza
por nos falar da morte.
Ela nos aterroriza
por nos falar da vida.
Na verdade a morte
nunca fala sobre si mesma.
Ela sempre nos fala
sobre aquilo que estamos
fazendo com a própria vida,
as perdas, os sonhos
que não sonhamos
os riscos que não tomamos
os suicídios lentos
que perpetuamos.
O quarto do mistério, 221
Sagrado
Sagrado
é aquilo que mesmo
depois de morrer,
volta sempre
chamado pela voz da saudade.
Deus existe
para nos curar da saudade.
omdra, 105
A proximidade da morte ilumina a vida
A proximidade da morte ilumina a vida.
Aqueles que contemplam a morte nos olhos
veem melhor, porque ela tem o poder
de apagar do cenário
tudo aquilo que não é essencial.
Os olhos dos vivos,
tocados pela morte, são puros.
Eles só veem aquilo
que o amor tornou eterno.
A morte nunca fala sobre a morte,
Ela só fala sobre a vida.
E ela sempre nos pergunta:
“o que é que você está esperando”
omdra, 204
Deus é como os olhos
Deus nunca foi visto por ninguém.
Por acaso a gente vê os próprios olhos?
Quem vê os próprios olhos é cego.
Para ver com os olhos
é preciso não ver os olhos…
Deus é como os olhos.
Não podemos vê-lo
para ver através dele.
Deus é um jeito de ver.
Perguntaram-me… 101
Deus é como o vento
Deus é como o vento.
Sentimos na pele quando ele passa,
ouvimos a sua música
nas folhas das árvores
e o seu assobio
nas gretas das portas.
Mas não sabemos de onde vem
nem para onde vai.
Na flauta o vento
se transforma em melodia.
Deus é uma suspeita
de nosso coração
de que o Universo tem um coração
que pulsa como o nosso.
Suspeita… Nenhuma certeza.
Perguntaram-me, 54 e 55